Conhecimento do futuro
868. Pode o futuro ser
revelado ao homem?
“Em princípio, o futuro lhe
é oculto e só em casos raros e excepcionais permite Deus que seja revelado.”
869. Com que fim o futuro
se conserva oculto ao homem?
“Se o homem conhecesse o
futuro, negligenciaria do presente e não obraria com a liberdade com que o faz,
porque o dominaria a idéia de que, se uma coisa tem que acontecer, inútil será
ocupar-se com ela, ou então procuraria obstar a que acontecesse. Não quis Deus que assim fosse, a
fim de que cada um concorra para a realização das coisas, até daquelas a que desejaria
opor-se. Assim é que tu mesmo preparas muitas vezes os acontecimentos que hão de
sobrevir no curso da tua existência.”
870. Mas, se convém que o
futuro permaneça oculto, por que permite Deus que seja revelado algumas vezes?
“Permite-o, quando o
conhecimento prévio do futuro facilite a execução de uma coisa, em vez de a estorvar,
obrigando o homem a agir diversamente do modo por que agiria, se lhe não fosse
feita a revelação. Não raro, também é uma prova. A perspectiva de um acontecimento pode
sugerir pensamentos mais ou menos bons. Se um homem vem a saber, por exemplo, que vai
receber uma herança, com que não conta, pode dar-se que a revelação desse fato
desperte nele o sentimento da cobiça, pela perspectiva de se lhe tornarem possíveis maiores
gozos terrenos, pela ânsia de possuir mais depressa a herança, desejando talvez, para que
tal se dê, a morte daquele de quem herdará. Ou, então, essa perspectiva lhe inspirará
bons sentimentos e pensamentos generosos. Se a predição não se cumpre, aí está outra prova,
consistente na maneira por que suportará a decepção. Nem por isso, entretanto, lhe caberá
menos o mérito ou o demérito dos pensamentos bons ou maus que a crença na ocorrência
daquele fato lhe fez nascer no íntimo.”
871. Pois que Deus tudo
sabe, não ignora se um homem sucumbirá ou não em determinada prova. Assim
sendo, qual a necessidade dessa prova, uma vez que nada acrescentará ao que Deus
já sabe a respeito desse homem?
“Isso eqüivale a perguntar
por que não criou Deus o homem perfeito e acabado (119); por que passa o homem
pela infância, antes de chegar à condição de adulto (379).
A prova não tem por fim dar
a Deus esclarecimentos sobre o homem, pois que Deus sabe perfeitamente o que ele
vale, mas dar ao homem toda a responsabilidade de sua ação, uma vez que tem a liberdade de
fazer ou não fazer. Dotado da faculdade de escolher entre o bem e o mal, a prova tem por
efeito pô-lo em luta com as tentações do mal e conferir-lhe todo o mérito da resistência. Ora,
conquanto saiba de antemão se ele se sairá bem ou não, Deus não o pode, em Sua justiça,
punir, nem recompensar, por um ato ainda não praticado.” (258)
Assim sucede entre os
homens. Por muito capaz que seja um estudante, por grande que seja a certeza que se
tenha de que alcançará bom êxito, ninguém lhe confere grau algum sem exame, isto é, sem
prova. Do mesmo modo, o juiz não condena um acusado, senão com fundamento num ato
consumado e não na previsão de que ele possa ou deva consumar esse fato.
Quanto mais se reflete nas
conseqüências que teria para o homem o conhecimento do futuro, melhor se vê
quanto foi sábia a Providência em lho ocultar. A certeza de um acontecimento venturoso o
lançaria na inação. A de um acontecimento infeliz o encheria de desânimo. Em ambos os casos,
suas forças ficariam paralisadas. Daí o não lhe ser mostrado o futuro, senão como meta
que lhe cumpre atingir por seus esforços, mas ignorando os trâmites por que terá de
passar para alcançá-la. O conhecimento de todos os incidentes da jornada lhe tolheria a
iniciativa e o uso do livre-arbítrio. Ele se deixaria resvalar pelo declive fatal dos
acontecimentos sem exercer suas faculdades. Quando o feliz êxito de uma coisa está assegurado,
ninguém mais com ela se preocupa.
Resumo teórico do móvel
das ações Humanas
872. A questão do
livre-arbítrio se pode resumir assim: O homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que
pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma
sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação, escolher uma existência em
que seja arrastado ao crime, quer pelo meio onde se ache colocado, quer pelas
circunstâncias que sobrevenham, mas será sempre
livre de agir ou não agir. Assim, o livre-arbítrio existe para ele, quando no estado de
Espírito, ao fazer a escolha da existência e das provas e, como encarnado, na faculdade de
ceder ou de resistir aos arrastamentos a que todos nos temos voluntariamente submetido.
Cabe à educação combater essas más tendências. Fá-lo-á utilmente, quando se basear
no estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que
regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la, como se modifica a inteligência pela
instrução e o temperamento pela higiene. Desprendido da matéria e no
estado de erraticidade, o Espírito procede à escolha de suas futuras existências
corporais, de acordo com o grau de perfeição a que haja chegado e é nisso, como temos dito,
que consiste sobretudo o seu livre-arbítrio. Esta liberdade, a encarnação não a anula. Se
ele cede à influência da matéria, é que sucumbe nas provas que por si mesmo escolheu. Para
ter quem o ajude a vencê-las, concedido lhe é invocar a assistência de Deus e dos
bons Espíritos. (337)
Sem o livre-arbítrio, o
homem não teria nem culpa por praticar o mal, nem mérito em praticar o bem. E isto a
tal ponto está reconhecido que, no mundo, a censura ou o elogio são feitos à intenção, isto
é, à vontade. Ora, quem diz vontade diz liberdade. Nenhuma desculpa poderá, portanto, o
homem buscar, para os seus delitos, na sua organização física, sem abdicar da razão e da
sua condição de ser humano, para se equiparar ao bruto. Se fora assim quanto ao mal, assim
não poderia deixar de ser relativamente ao bem. Mas, quando o homem pratica o bem, tem
grande cuidado de averbar o fato à sua conta, como mérito, e não cogita de por ele
gratificar os seus órgãos, o que prova que, por instinto, não renuncia, mau grado à opinião de
alguns sistemáticos, ao mais belo privilégio de sua espécie: a liberdade de pensar. A fatalidade, como
vulgarmente é entendida, supõe a decisão prévia e irrevogável de todos os sucessos da vida,
qualquer que seja a importância deles. Se tal fosse a ordem das coisas, o homem
seria qual máquina sem vontade. De que lhe serviria a inteligência, desde que
houvesse de estar invariavelmente dominado, em todos os seus atos, pela força do destino?
Semelhante doutrina, se verdadeira, conteria a destruição de toda liberdade moral; já não
haveria para o homem responsabilidade, nem, por conseguinte, bem, nem mal, crimes ou
virtudes. Não seria possível que Deus, soberanamente justo, castigasse suas criaturas
por faltas cujo cometimento não dependera delas, nem que as recompensasse por virtudes
de que nenhum mérito teriam. Demais, tal lei seria a negação da do progresso, porquanto o
homem, tudo esperando da sorte, nada tentaria para melhorar a sua posição, visto que não
conseguiria ser mais nem menos.
Contudo, a fatalidade não é
uma palavra vã. Existe na posição que o homem ocupa na Terra e nas funções que
aí desempenha, em conseqüência do gênero de vida que seu Espírito escolheu como
prova, expiação ou missão. Ele sofre fatalmente todas as vicissitudes dessa
existência e todas as tendências boas ou más, que lhe são
inerentes. Aí, porém, acaba a fatalidade,
pois da sua vontade depende ceder ou não a essas tendências. Os pormenores dos
acontecimentos, esses ficam subordinados às circunstâncias que ele próprio cria pelos seus
atos, sendo que nessas circunstâncias podem os Espíritos influir pelos pensamentos que
sugiram. (459)
Há fatalidade, portanto, nos
acontecimentos que se apresentam, por serem estes conseqüência da escolha que
o Espírito fez da sua existência de homem. Pode deixar de haver fatalidade no
resultado de tais acontecimentos, visto ser possível ao homem, pela sua prudência, modificar-lhes o
curso. Nunca há fatalidade nos atos da vida moral. No que concerne à morte é
que o homem se acha submetido, em absoluto, à inexorável lei da
fatalidade, por isso que não pode escapar à sentença que lhe marca o termo da existência, nem ao gênero
de morte que haja de cortar a esta o fio.
Segundo a doutrina vulgar,
de si mesmo tiraria o homem todos os seus instintos que, então, proviriam, ou da sua
organização física, pela qual nenhuma responsabilidade lhe toca, ou da sua própria
natureza, caso em que lícito lhe fora procurar desculpar-se consigo mesmo, dizendo não lhe
pertencer a culpa de ser feito como é. Muito mais moral se mostra, indiscutivelmente, a
Doutrina Espírita. Ela admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude e, se lhe diz que,
praticando o mal, ele cede a uma sugestão estranha e má, em nada lhe diminui a
responsabilidade, pois lhe reconhece o poder de resistir, o que evidentemente lhe é muito
mais fácil do que lutar contra a sua própria natureza. Assim, de acordo com a Doutrina
Espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre cerrar ouvidos à voz oculta
que lhe fala no íntimo, induzindo-o ao mal, como pode cerrá-los à voz material daquele que
lhe fale ostensivamente. Pode-o pela ação da sua vontade, pedindo a Deus a força
necessária e reclamando, para tal fim, a assistência dos bons Espíritos. Foi o que Jesus
nos ensinou por meio da sublime prece que é a oração dominical, quando manda que digamos:
“Não nos deixes sucumbir à tentação, mas livra-nos do mal.”
Essa teoria da causa
determinante dos nossos atos ressalta com evidência de todo o ensino que os Espíritos hão
dado. Não só é sublime de moralidade, mas também, acrescentaremos, eleva o
homem aos seus próprios olhos. Mostra-o livre de subtrair-se a um jugo obsessor, como livre
é de fechar sua casa aos importunos. Ele deixa de ser simples máquina, atuando por efeito
de uma impulsão independente da sua vontade, para ser um ente racional, que ouve,
julga e escolhe livremente de dois conselhos um. Aditemos que, apesar disto, o homem não se
acha privado de iniciativa, não deixa de agir por impulso próprio, pois que, em
definitiva, ele é apenas um Espírito encarnado que conserva, sob o envoltório corporal, as
qualidades e os defeitos que tinha como Espírito. Conseguintemente, as faltas
que cometemos têm por fonte primária a imperfeição do nosso próprio Espírito, que ainda não conquistou a
superioridade moral que um dia alcançará, mas que, nem por isso, carece de
livre-arbítrio. A vida corpórea lhe é dada para se expungir de suas imperfeições, mediante as
provas por que passa, imperfeições que, precisamente, o tornam mais fraco e mais acessível
às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, que delas se aproveitam para tentar
fazê-lo sucumbir na luta em que se empenhou. Se dessa luta sai vencedor ele se eleva; se
fracassa, permanece o que era, nem pior, nem melhor. Será uma prova que lhe cumpre
recomeçar, podendo suceder que longo tempo gaste nessa alternativa.
Quanto mais se depura, tanto
mais diminuem os seus pontos fracos e tanto menos acesso oferece aos que procurem
atraí-lo para o mal. Na razão de sua elevação, cresce-lhe a força moral, fazendo que dele se
afastem os maus Espíritos.Todos os Espíritos, mais ou
menos bons, quando encarnados, constituem a espécie humana e, como o nosso mundo
é um dos menos adiantados, nele se conta maior número de Espíritos maus do que de
bons. Tal a razão por que aí vemos perversidade. Façamos, pois, todos os esforços para
a este planeta não voltarmos, após a presente estada, e para merecermos ir repousar em
mundo melhor, em um desses mundos privilegiados, onde não nos lembraremos da nossa
passagem por aqui, senão como de um exílio temporário.
CAPÍTULO XI
DA LEI DE JUSTIÇA, DE AMOR E DE CARIDADE
1. Justiça e direitos
naturais. - 2. Direito de propriedade. Roubo. - 3. Caridade e amor do próximo. - 4. Amor
materno e filial.
Justiça e direitos
naturais
873. O sentimento da
justiça está em a Natureza, ou é resultado de idéias adquiridas?
“Está de tal modo em a
Natureza, que vos revoltais à simples idéia de uma injustiça. É fora de dúvida que o
progresso moral desenvolve esse sentimento, mas não o dá. Deus o pôs no coração do homem. Daí
vem que, freqüentemente, em homens simples e incultos se vos deparam noções mais
exatas da justiça do que nos que possuem grande cabedal de saber.”
874. Sendo a justiça uma
lei da Natureza, como se explica que os homens a entendam de modos tão
diferentes, considerando uns justo o que a outros parece injusto?
“É porque a esse sentimento
se misturam paixões que o alteram, como sucede à maior parte dos outros
sentimentos naturais, fazendo que os homens vejam as coisas por um prisma falso.”
875. Como se pode definir
a justiça?
“A justiça consiste em cada
um respeitar os direitos dos demais.”
a) - Que é o que
determina esses direitos?
“Duas coisas: a lei humana e
a lei natural. Tendo os homens formulado leis apropriadas a seus costumes
e caracteres, elas estabeleceram direitos mutáveis com o progresso das luzes. Vede se
hoje as vossas leis, aliás imperfeitas, consagram os mesmos direitos que as da Idade
Média. Entretanto, esses direitos antiquados, que agora se vos afiguram monstruosos,
pareciam justos e naturais naquela época. Nem sempre, pois, é acorde com a justiça o
direito que os homens prescrevem. Demais, este direito regula apenas algumas relações
sociais, quando é certo que, na vida particular, há uma imensidade de atos unicamente da alçada
do tribunal da consciência.”
876. Posto de parte o
direito que a lei humana consagra, qual a base da justiça, segundo a lei natural?
“Disse o Cristo: Queira
cada um para os outros o que quereria para si mesmo. No coração do homem imprimiu
Deus a regra da verdadeira justiça, fazendo que cada um deseje ver respeitados os
seus direitos. Na incerteza de como deva proceder com o seu semelhante, em dada
circunstância, trate o homem de saber como quereria que com ele procedessem, em
circunstância idêntica. Guia mais seguro do que a própria consciência não lhe podia Deus haver dado.”
Efetivamente, o critério da
verdadeira justiça está em querer cada um para os outros o que para si mesmo quereria
e não em querer para si o que quereria para os outros, o que absolutamente não é a mesma
coisa. Não sendo natural que haja quem deseje o mal para si, desde que cada um tome por
modelo o seu desejo pessoal, é evidente que nunca ninguém desejará para o seu
semelhante senão o bem. Em todos os tempos e sob o império de todas as crenças, sempre o homem
se esforçou para que prevalecesse o seu direito pessoal. A sublimidade da religião
cristã está em que ela tomou o direito pessoal por base do direito do próximo.
877. Da necessidade que o
homem tem de viver em sociedade, nascem-lhe obrigações especiais?
“Certo e a primeira de todas
é a de respeitar os direitos de seus semelhante. Aquele que respeitar esses direitos
procederá sempre com justiça. Em o vosso mundo, porque a maioria dos homens não
pratica a lei de justiça, cada um usa de represálias. Essa a causa da perturbação e da confusão em
que vivem as sociedades humanas. A vida social outorga direitos e impões deveres
recíprocos.”
878. Podendo o homem
enganar-se quanto à extensão do seu direito, que é o que lhe fará conhecer o
limite desse direito?
“O limite do direito que,
com relação a si mesmo, reconhecer ao seu semelhante, em idênticas circunstâncias e
reciprocamente.”
a) - Mas, se cada um
atribuir a si mesmo direitos iguais aos de seu semelhante, que virá a
ser da subordinação aos superiores? Não será isso a anarquia de todos os poderes?
“Os direitos naturais são os
mesmos para todos os homens, desde os de condição mais humilde até os de
posição mais elevada. Deus não fez uns de limo mais puro do que o de que se serviu para fazer
os outros, e todos, aos Seus olhos, são iguais. Esses direitos são eternos. Os que o homem
estabeleceu perecem com as suas instituições. Demais, cada um sente bem a sua força ou a
sua fraqueza e saberá sempre ter uma certa deferência para com os que o mereçam por suas
virtudes e sabedoria. É importante acentuar isto, para que os que se julgam superiores
conheçam seus deveres, a fim de merecer essas deferências. A subordinação não se achará
comprometida, quando a autoridade for deferida à sabedoria.”
879. Qual seria o caráter
do homem que praticasse a justiça em toda a sua pureza?
“O do verdadeiro justo, a
exemplo de Jesus, porquanto praticaria também o amor do próximo e a caridade, sem os
quais não há verdadeira justiça.”
Direito de propriedade.
Roubo
880. Qual o primeiro de
todos os direitos naturais do homem?
“O de viver. Por isso é que
ninguém tem o de atentar contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o
que quer que possa comprometer-lhe a existência corporal.”
881. O direito de viver
dá ao homem o de acumular bens que lhe permitam repousar quando não mais
possa trabalhar?
“Dá, mas ele deve fazê-lo em
família, como a abelha, por meio de um trabalho honesto, e não como egoísta.
Há mesmo animais que lhe dão o exemplo de previdência.”
882. Tem o homem o
direito de defender os bens que haja conseguido juntar pelo seu trabalho?
“Não disse Deus: “Não
roubarás?” E Jesus não disse: “Dai a César o que é de César?”
O que, por meio do trabalho
honesto, o homem junta constitui legítima propriedade sua, que ele tem o direito
de defender, porque a propriedade que resulta do trabalho é um direito natural, tão sagrado
quando o de trabalhar e de viver.
883. É natural o desejo
de possuir?
“Sim, mas quando o homem
deseja possuir para si somente e para sua satisfação pessoal, o que há é
egoísmo.”
a) - Não será,
entretanto, legítimo o desejo de possuir, uma vez aquele que tem de que viver a ninguém é
pesado?
“Há homens insaciáveis, que
acumulam bens sem utilidade para ninguém, ou apenas para saciar suas paixões. Julgas que Deus vê
isso com bons olhos? Aquele que, ao contrário, junta pelo trabalho, tendo em vista
socorrer os seus semelhantes, pratica a lei de amor e caridade, e Deus abençoa o seu
trabalho.”
884. Qual o caráter da
legítima propriedade?
“Propriedade legítima só é a
que foi adquirida sem prejuízo de outrem.” (808)
Proibindo-nos que façamos
aos outros o que não desejáramos que nos fizessem, a lei de amor e de justiça nos
proíbe, ipso facto, a aquisição de bens por quaisquer meios que lhe sejam contrários.
885. Será ilimitado o
direito de propriedade?
“É fora de dúvida que tudo o
que legitimamente se adquire constitui uma propriedade. Mas, como
havemos dito, a legislação dos homens, porque imperfeita, consagra muitos direitos
convencionais, que a lei de justiça reprova. Essa a razão por que eles reformam suas leis, à
medida que o progresso se efetua e que melhor compreendem a justiça. O que num século
parece perfeito, afigura-se bárbaro no século seguinte.” (795)
Caridade e amor do
próximo
886. Qual o verdadeiro
sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?
“Benevolência para com
todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
O amor e a caridade são o
complemento da lei de justiça. pois amar o próximo é fazer-lhe todo o bem que nos
seja possível e que desejáramos nos fosse feito. Tal o sentido destas palavras de
Jesus: Amai-vos uns aos outros como irmãos. A caridade, segundo Jesus,
não se restringe à esmola, abrange todas as relações em que nos achamos com os
nossos semelhantes, sejam eles nossos inferiores, nossos iguais, ou nossos
superiores. Ela nos prescreve a indulgência, porque da indulgência precisamos nós mesmos, e nos
proíbe que humilhemos os desafortunados,
contrariamente ao que se costuma fazer. Apresente-se uma pessoa rica e todas as
atenções e deferências lhe são dispensadas. Se for pobre, toda gente como que entende que não
precisa preocupar-se com ela. No entanto, quanto mais lastimosa seja a sua
posição, tanto maior cuidado devemos pôr em lhe não aumentarmos o infortúnio pela
humilhação. O homem verdadeiramente bom procura elevar, aos seus próprios olhos, aquele que
lhe é inferior, diminuindo a distância que os separa.
887. Jesus também disse:
Amai mesmo os vossos inimigos. Ora, o amor aos inimigos não será
contrário às nossas tendências naturais e a inimizade não provirá de uma falta de simpatia
entre os Espíritos?
“Certo ninguém pode votar
aos seus inimigos um amor terno e apaixonado. Não foi isso o que Jesus
entendeu de dizer. Amar os inimigos é perdoar-lhes e lhes retribuir o mal com o bem. O que assim
procede se torna superior aos seus inimigos, ao passo que abaixo deles se coloca , se
procura tomar vingança.”
888. Que se deve pensar
da esmola?
“Condenando-se a pedir
esmola, o homem se degrada física e moralmente: embrutece-se. Uma sociedade
que se baseia na lei de Deus e na justiça deve prover à vida do fraco, sem que
haja para ele humilhação. Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes
deixar a vida à mercê do acaso e da boa-vontade de alguns.”
a) - Dar-se-á reproveis a
esmola?
“Não; o que merece
reprovação não é a esmola, mas a maneira por que habitualmente é dada. O
homem de bem, que compreende a caridade de acordo com Jesus, vai ao encontro do
desgraçado, sem esperar que este lhe estenda a mão.
“A verdadeira caridade é
sempre bondosa e benévola; está tanto no ato, como na maneira por que é praticado.
Duplo valor tem um serviço prestado com delicadeza. Se o for com altivez, pode ser
que a necessidade obrigue quem o recebe a
aceitá-lo, mas o seu coração pouco se comoverá.
“Lembrai-vos também de que,
aos olhos de Deus, a ostentação tira o mérito ao benefício. Disse Jesus:
“Ignore a vossa mão esquerda o que a direita der.” Por essa forma, ele vos ensinou a não
tisnardes a caridade com o orgulho. “Deve-se distinguir a
esmola, propriamente dita, da beneficência. Nem sempre o mais necessitado é o que
pede. O temor de uma humilhação detém o verdadeiro pobre, que muita vez sofre sem se
queixar. A esse é que o homem verdadeiramente humano sabe ir procurar, sem ostentação.
“Amai-vos uns aos outros,
eis toda a lei, lei divina, mediante a qual governa Deus os mundos. O amor é a lei de
atração para os seres vivos e organizados. A atração é a lei de amor para a matéria
inorgânica.
“Não esqueçais nunca que o
Espírito, qualquer que seja o grau de seu adiantamento, sua situação como encarnado,
ou na erraticidade, está sempre colocado entre um superior, que o guia e aperfeiçoa, e
um inferior, para com o qual tem que cumprir esses mesmos deveres. Sede, pois,
caridosos, praticando, não só a caridade que vos faz dar friamente o óbolo que tirais do bolso ao
que vo-lo ousa pedir, mas a que vos leve ao encontro das misérias ocultas. Sede
indulgentes com os defeitos dos vossos semelhantes. Em vez de votardes desprezo à
ignorância e ao vício, instruí os ignorantes e moralizai os viciados. Sede brandos e benevolentes
para com tudo o que vos seja inferior. Sede-o para com os seres mais ínfimos da
criação e tereis obedecido à lei de Deus.”
SÃO VICENTE DE PAULO
889. Não há homens que se
vêem condenados a mendigar por culpa sua?
“Sem dúvida; mas, se uma boa
educação moral lhes houvera ensinado a praticar a lei de Deus, não teriam caído nos excessos
causadores da sua perdição. Disso, sobretudo, é que depende a melhoria do vosso planeta.” (707)
Amor materno e filial
890. Será uma virtude o
amor materno, ou um sentimento instintivo, comum aos homens e aos animais?
“Uma e outra coisa. A
Natureza deu à mãe o amor a seus filhos no interesse da conservação deles. No
animal, porém, esse amor se limita às necessidades materiais; cessa quando desnecessário se
tornam os cuidados. No homem, persiste pela vida inteira e comporta um devotamento e
uma abnegação que são virtudes. Sobrevive mesmo à morte e acompanha o filho até no
além-túmulo. Bem vedes que há nele coisa diversa do que há no amor do animal.” (205-385)
891. Estando em a
Natureza o amor materno, como é que há mães que odeiam os filhos e, não raro, desde
a infância destes?
“Às vezes, é uma prova que o
Espírito do filho escolheu, ou uma expiação, se aconteceu ter sido mau pai,
ou mãe perversa, ou mau filho, noutra existência (392). Em todos os casos, a mãe má não
pode deixar de ser animada por um mau Espírito que procura criar embaraços ao filho, a
fim de que sucumba na prova que buscou. Mas, essa violação das leis da Natureza não
ficará impune e o Espírito do filho será recompensado pelos obstáculos de que haja
triunfado.”
892. Quando os filhos
causam desgostos aos pais, não têm estes desculpa para o fato de lhes não
dispensarem a ternura de que os fariam objeto, em caso contrário?
“Não, porque isso representa
um encargo que lhes é confiado e a missão deles consiste em se esforçarem
por encaminhar os filhos para o bem (582-583). Demais, esses desgostos são, amiúde, a
conseqüência do mau feitio que os pais deixaram que seus filhos tomassem desde o berço.
Colhem o que semearam.”
CAPÍTULO XII
DA PERFEIÇÃO MORAL
1. As virtudes e os
vícios. - 2. Paixões. - 3. O egoísmo. - 4. Caracteres do homem de bem. - 5. Conhecimento de si
mesmo.
As virtudes e os vícios
893. Qual a mais
meritória de todas as virtudes?
“Toda virtude tem seu mérito
próprio, porque todas indicam progresso na senda do bem. Há virtudes sempre que
há resistência voluntária ao arrastamento dos maus pendores. A sublimidade da virtude,
porém, está no sacrifício do interesse pessoal, pelo bem do próximo, sem pensamento
oculto. A mais meritória é a que assenta na mais desinteressada caridade.”
894. Há pessoas que fazem
o bem espontaneamente, sem que precisem vencer quaisquer sentimentos que
lhes sejam opostos. Terão tanto mérito, quanto as que se vêem na contingência de lutar
contra a natureza que lhes é própria e a vencem?
“Só não têm que lutar
aqueles em quem já há progresso realizado. Esses lutaram outrora e triunfaram. Por
isso é que os bons sentimentos nenhum esforço lhes custam e suas ações lhes parecem
simplíssimas. O bem se lhes tornou um hábito. Devidas lhes são as honras que se costumam
tributar a velhos guerreiros que conquistaram seus altos postos.
“Como ainda estais longe da
perfeição, tais exemplos vos espantam pelo contraste com o que tendes à vista e
tanto mais os admirais, quanto mais raros são. Ficai sabendo, porém, que, nos mundos mais
adiantados do que o vosso, constitui a regra o que entre vós representa a exceção. Em
todos os pontos desses mundos, o sentimento do bem é espontâneo, porque somente
bons Espíritos os habitam. Lá, uma só intenção maligna seria monstruosa exceção. Eis por
que neles os homens são ditosos. O mesmo se dará na Terra, quando a Humanidade se
houver transformado, quando compreender e praticar a caridade na sua verdadeira acepção.”
895. Postos de lado os
defeitos e os vícios acerca dos quais ninguém se pode equivocar, qual o sinal
mais característico da imperfeição?
“O interesse pessoal.
Freqüentemente, as qualidades morais são como, num objeto de cobre, a douradura que
não resiste à pedra de toque. Pode um homem possuir qualidades reais, que levem o mundo a
considerá-lo homem de bem. Mas, essas qualidades, conquanto assinalem um progresso, nem
sempre suportam certas provas e às vezes basta que se fira a corda do interesse pessoal
para que o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa ainda tão rara na
Terra que, quando se patenteia todos o admiram como se fora um fenômeno.
“O apego às coisas materiais
constitui sinal notório de inferioridade, porque, quanto mais se aferrar aos bens
deste mundo, tanto menos compreende o homem o seu destino. Pelo desinteresse, ao
contrário, demonstra que encara de um ponto mais elevado o futuro.”
896. Há pessoas
desinteressadas, mas sem discernimento, que prodigalizam seus haveres sem utilidade
real, por lhes não saberem dar emprego criterioso. Têm algum merecimento essas
pessoas?
“Têm o do desinteresse,
porém não o do bem que poderiam fazer. O desinteresse é uma virtude, mas a
prodigalidade irrefletida constitui sempre, pelo menos, falta de juízo. A riqueza,
assim como não é dada a uns para ser aferrolhada num cofre forte, também não o é a outros para
ser dispersada ao vento. Representa um depósito de que uns e outros terão de prestar
contas, porque terão de responder por todo o bem que podiam fazer e não fizeram, por todas as
lágrimas que podiam ter estancado com o dinheiro que deram aos que dele não precisavam.”
897. Merecerá reprovação
aquele que faz o bem, sem visar a qualquer recompensa na Terra, mas esperando
que lhe seja levado em conta na outra vida e que lá venha a ser melhor a sua situação? E
essa preocupação lhe prejudicará o progresso?
“O bem deve ser feito
caritativamente, isto é, com desinteresse.”
a) - Contudo, todos
alimentam o desejo muito natural de progredir, para forrar-se à penosa condição desta
vida. Os próprios Espíritos nos ensinam a praticar o bem com esse objetivo. Será, então, um
mal pensarmos que, praticando o bem, podemos esperar coisa melhor do que temos na
Terra?
“Não, certamente; mas aquele
que faz o bem, sem idéia preconcebida, pelo só prazer de ser agradável a Deus e ao
seu próximo que sofre, já se acha num certo grau de progresso, que lhe permitirá alcançar a
felicidade muito mais depressa do que seu irmão que, mais positivo, faz o bem por
cálculo e não impelido pelo ardor natural do seu coração.” (894)
b) - Não haverá aqui uma
distinção a estabelecer-se entre o bem que podemos fazer ao nosso próximo e o
cuidado que pomos em corrigir-nos dos nossos defeitos? Concebemos que seja pouco
meritório fazermos o bem com a idéia de que nos seja levado em conta na outra vida;
mas será igualmente indício de inferioridade emendarmo-nos, vencermos as nossas
paixões, corrigirmos o nosso caráter, com o propósito de nos aproximarmos dos bons
Espíritos e de nos elevarmos?
“Não, não. Quando dizemos -
fazer o bem, queremos significar - ser caridoso. Procede como egoísta todo
aquele que calcula o que lhe possa cada uma de suas boas ações render na vida futura, tanto
quanto na vida terrena. Nenhum egoísmo, porém, há em querer o homem melhorar-se, para se
aproximar de Deus, pois que é o fim para o qual devem todos tender.”
898. Sendo a vida
corpórea apenas uma estada temporária neste mundo e devendo o futuro constituir
objeto da nossa principal preocupação, será útil nos esforcemos por adquirir conhecimentos
científicos que só digam respeito às coisas e às necessidades materiais?
“Sem dúvida. Primeiramente,
isso vos põe em condições de auxiliar os vossos irmãos; depois, o vosso
Espírito subirá mais depressa, se já houver progredido em inteligência. Nos intervalos
das encarnações, aprendereis numa hora o que na Terra vos exigiria anos de
aprendizado. Nenhum conhecimento é inútil; todos mais ou menos contribuem para o progresso,
porque o Espírito, para ser perfeito, tem que saber tudo, e porque, cumprindo que o
progresso se efetue em todos os sentidos, todas as idéias adquiridas ajudam o
desenvolvimento do Espírito.”
899. Qual o mais culpado
de dois homens ricos que empregam exclusivamente em gozos pessoais suas
riquezas, tendo um nascido na opulência e desconhecido sempre a necessidade, devendo o
outro ao seu trabalho os bens que possui?
“Aquele que conheceu os
sofrimentos, porque sabe o que é sofrer. A dor, a que nenhum alívio procura dar,
ele a conhece; porém, como freqüentemente sucede, já dela se não lembra.”
900. Aquele que
incessantemente acumula haveres, sem fazer o bem a quem quer que seja, achará
desculpa, que valha, na circunstância de acumular com o fito de maior soma legar aos seus
herdeiros?
“É um compromisso com a
consciência má.”
901. Figuremos dois
avarentos, um dos quais nega a si mesmo o necessário e morre de miséria sobre o seu
tesouro, ao passo que o segundo só o é para os outros, mostrando-se pródigo para consigo
mesmo; enquanto recua ante o mais ligeiro sacrifício para prestar um serviço ou fazer
qualquer coisa útil, nunca julga demasiado o que dependa para satisfazer aos seus
gostos ou às suas paixões. Peça-se-lhe um obséquio e estará sempre em dificuldade para fazê-lo;
imagine, porém, realizar uma fantasia e terá sempre o bastante para isso. Qual o mais
culpado e qual o que se achará em pior situação no mundo dos Espíritos?
“O que goza, porque é mais
egoísta do que avarento. O outro já recebeu parte do seu castigo.”
902. Será reprovável que
cobicemos a riqueza, quando nos anime o desejo de fazer o bem?
“Tal sentimento é, não há
dúvida, louvável, quando puro. Mas, será sempre bastante desinteressado esse desejo?
Não ocultará nenhum intuito de ordem pessoal? Não será de fazer o bem a si mesmo, em
primeiro lugar, que cogita aquele, em quem tal desejo se manifesta?”
903. Incorre em culpa o
homem, por estudar os defeitos alheios?
“Incorrerá em grande culpa,
se o fizer para os criticar e divulgar, porque será faltar com a caridade. Se o fizer,
para tirar daí proveito, para evitá-los, tal estudo poderá ser-lhe de alguma utilidade.
Importa, porém, não esquecer que a indulgência para com os defeitos de outrem é uma das virtudes
contidas na caridade. Antes de censurardes as imperfeições dos outros, vede se de vós
não poderão dizer o mesmo. Tratai, pois, de possuir as qualidades opostas aos
defeitos que criticais no vosso semelhante. Esse o meio de vos tornardes superiores a ele.
Se lhe censurais a ser avaro, sede generosos; se o ser orgulhoso, sede humildes e modestos; se
o ser áspero, sede brandos; se o proceder com
pequenez, sede grandes em todas as vossas ações. Numa palavra, fazei por maneira
que se não vos possam aplicar estas palavras de Jesus: Vê o argueiro no olho do seu
vizinho e não vê a trave no seu próprio.”
904. Incorrerá em culpa
aquele que sonda as chagas da sociedade e as expõe em público?
“Depende do sentimento que o
mova. Se o escritor apenas visa produzir escândalo, não faz mais do que
proporcionar a si mesmo um gozo pessoal, apresentando quadros que constituem antes mau do que
bom exemplo. O Espírito aprecia isso, mas pode vir a ser punido por essa espécie de
prazer que encontra em revelar o mal.”
a) - Como, em tal caso,
julgar da pureza das intenções e da sinceridade do escritor?
“Nem sempre há nisso
utilidade. Se ele escrever boas coisas, aproveitai-as. Se proceder mal, é uma questão
de consciência que lhe diz respeito, exclusivamente. Demais, se o escritor tem empenho em
provar a sua sinceridade, apóie o que disser nos exemplos que dê.”
905. Alguns autores hão
publicado belíssimas obras de grande moral, que auxiliam o progresso da
Humanidade, das quais, porém, nenhum proveito tiraram eles. Ser-lhes-á levado em conta, como
Espíritos, o bem a que suas obras hajam dado lugar?
“A moral sem as ações é o
mesmo que a semente sem o trabalho. De que vos serve a semente, se não a fazeis dar
frutos que vos alimentem? Grave é a culpa desses homens, porque dispunham de
inteligência para compreender. Não praticando as máximas que ofereciam aos outros,
renunciaram a colher-lhes os frutos.”
906. Será passível de
censura o homem, por ter consciência do bem que faz e por confessá-lo a si mesmo?
“Pois que pode ter
consciência do mal que pratica, do bem igualmente deve tê-la, a fim de saber se andou bem ou mal. Pesando todos os
seus atos na balança da lei de Deus e, sobretudo, na lei de justiça, amor e caridade, é
que poderá dizer a si mesmo se suas obras são boas ou más, que as poderá aprovar ou
desaprovar. Não se lhe pode, portanto, censurar que reconheça haver triunfado dos maus pendores
e que se sinta satisfeito, desde que de tal não se envaideça, porque então cairia noutra
falta.” (919)
Paixões
907. Será
substancialmente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na Natureza?
“Não; a paixão está no
excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto
no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes
coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.”
908. Como se poderá
determinar o limite onde as paixões deixam de ser boas para se tornarem más?
“As paixões são como um
corcel, que só tem utilidade quando governado e que se torna perigoso desde que
passe a governar. Uma paixão se torna perigosa a partir do momento em que deixais de
poder governá-la e que dá em resultado um prejuízo qualquer para vós mesmos, ou para
outrem.”
As paixões são alavancas que
decuplicam as forças do homem e o auxiliam na execução dos desígnios da
Providência. Mas, se, em vez de as dirigir, deixa que elas o dirijam, cai o homem nos
excessos e a própria força que, manejada pelas suas mãos, poderia produzir o bem,
contra ele se volta e o esmaga.
Todas as paixões têm seu
princípio num sentimento, ou numa necessidade natural. O princípio das paixões não
é, assim, um mal, pois que assenta numa das condições providenciais da nossa
existência. A paixão propriamente dita é a exageração de uma necessidade ou de um
sentimento. Está no excesso e não na causa e este excesso se torna um mal, quando tem como
conseqüência um mal qualquer.
Toda paixão que aproxima o
homem da natureza animal afasta-o da natureza espiritual. Todo sentimento que eleva o
homem acima da natureza animal denota predominância do espírito
sobre a matéria e o aproxima da perfeição.
909. Poderia sempre o
homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?
“Sim, e, freqüentemente,
fazendo esforços muito insignificantes. O que lhe falta é a vontade. Ah! Quão poucos
dentre vós fazem esforços!”
910. Pode o homem achar
nos Espíritos eficaz assistência para triunfar de suas paixões?
“Se o pedir a Deus e ao seu
bom gênio, com sinceridade, os bons Espíritos lhe virão certamente em auxílio,
porquanto é essa a missão deles.” (459)
911. Não haverá paixões
tão vivas e irresistíveis, que a vontade seja impotente para dominá-las?
“Há muitas pessoas que
dizem: Quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém muito
satisfeitas ficam que não seja como “querem”. Quando o homem crê que não pode vencer as suas
paixões, é que seu Espírito se compraz nelas, em conseqüência da sua inferioridade.
Compreende a sua natureza espiritual aquele que as procura reprimir. Vencê-las é, para ele, uma
vitória do Espírito sobre a matéria.”
912. Qual o meio mais
eficiente de combater-se o predomínio da natureza corpórea?
“Praticar a abnegação.”
O egoísmo
913. Dentre os vícios,
qual o que se pode considerar radical?
“Temo-lo dito muitas vezes:
o egoísmo. Daí deriva todo mal. Estudai todos os vícios e vereis que no fundo de todos há egoísmo. Por
mais que lhes deis combate, não chegareis a extirpá-los, enquanto não atacardes o mal pela
raiz, enquanto não lhe houverdes destruído a causa. Tendam, pois, todos os esforços para esse
efeito, porquanto aí é que está a verdadeira chaga da sociedade. Quem quiser, desde esta
vida, ir aproximando-se da perfeição moral, deve expurgar o seu coração de todo sentimento
de egoísmo, visto ser o egoísmo incompatível com a justiça, o amor e a caridade. Ele
neutraliza todas as outras qualidades.”
914. Fundando-se o
egoísmo no sentimento do interesse pessoal, bem difícil parece extirpá-lo inteiramente
do coração humano. Chegar-se-á a consegui-lo?
“À medida que os homens se
instruem acerca das coisas espirituais, menos valor dão às coisas materiais. Depois,
necessário é que se reformem as instituições humanas que o entretêm e excitam. Isso
depende da educação.”
915. Por ser inerente à
espécie humana, o egoísmo não constituirá sempre um obstáculo ao reinado do
bem absoluto na Terra?
“É exato que no egoísmo
tendes o vosso maior mal, porém ele se prende à inferioridade dos Espíritos
encarnados na Terra e não à Humanidade mesma. Ora, depurando-se por encarnações
sucessivas, os Espíritos se despojam do egoísmo, como de suas outras impurezas. Não
existirá na Terra nenhum homem isento de egoísmo e praticante da caridade? Há muito mais
homens assim do que supondes. Apenas, não os conheceis, porque a virtude foge à viva
claridade do dia. Desde que haja um, por que não haverá dez? Havendo dez, por que não
haverá mil e assim por diante?"
916. Longe de diminuir, o
egoísmo cresce com a civilização, que, até, parece, o excita e mantém. Como
poderá a causa destruir o efeito?
“Quanto maior é o mal, mais
hediondo se torna. Era preciso que o egoísmo produzisse muito mal, para
que compreensível se fizesse a
necessidade de extirpá-lo. Os homens, quando se houverem despojado do egoísmo que os
domina, viverão como irmãos, sem se fazerem mal algum, auxiliando-se
reciprocamente, impelidos pelo sentimento mútuo da solidariedade.
Então, o forte será o amparo e não o
opressor do fraco e não mais serão vistos homens a quem falte o indispensável, porque todos
praticarão a lei de justiça. Esse o reinado do bem, que os Espíritos estão incumbidos
de preparar.” (784)
917. Qual o meio de
destruir-se o egoísmo?
“De todas as imperfeições
humanas, o egoísmo é a mais difícil de desenraizar-se porque deriva da influência
da matéria, influência de que o homem, ainda muito próximo de sua origem, não pôde
libertar-se e para cujo entretenimento tudo concorre: suas leis, sua organização social, sua
educação. O egoísmo se enfraquecerá à proporção que a vida moral for predominante sobre a
vida material e, sobretudo, com a compreensão, que o Espiritismo vos faculta, do vosso estado
futuro, real e não desfigurado por ficções alegóricas. Quando, bem compreendido, se houver
identificado com os costumes e as crenças, o Espiritismo transformará os hábitos, os
usos, as relações sociais. O egoísmo assenta na importância da personalidade. Ora, o
Espiritismo, bem compreendido, repito, mostra as coisas de tão alto que o sentimento da
personalidade desaparece, de certo modo, diante da imensidade. Destruindo essa importância,
ou, pelo menos, reduzindo-a às suas legítimas proporções, ele necessariamente combate o
egoísmo.
“O choque, que o homem
experimenta, do egoísmo os outros é o que muitas vezes o faz egoísta, por sentir a
necessidade de colocar-se na defensiva. Notando que os outros pensam em si próprios e não
nele, ei-lo levado a ocupar-se consigo, mais do que com os outros. Sirva de base às
instituições sociais, às relações legais de povo a povo e de homem a homem o princípio da
caridade e da fraternidade e cada um pensará menos na sua pessoa, assim veja que outros nela
pensam. Todos experimentarão a influência
moralizadora do exemplo e do contacto. Em face do atual extravasamento de egoísmo, grande virtude é
verdadeiramente necessária, para que alguém renuncie à sua personalidade em proveito
dos outros, que, de ordinário, absolutamente lhe não agradecem.
Principalmente para os que
possuem essa virtude, é que o reino dos céus se acha aberto. A esses, sobretudo, é que está
reservada a felicidade dos eleitos, pois em verdade vos digo que, no dia da justiça, será
posto de lado e sofrerá pelo abandono, em que se há de ver, todo aquele que em si somente
houver pensado.” (785)
FÉNELON.
Louváveis esforços
indubitavelmente se empregam para fazer que a Humanidade progrida. Os bons
sentimentos são animados, estimulados e honrados mais do que em qualquer outra época.
Entretanto, o egoísmo, verme roedor, continua a ser a chaga social. É um mal real, que se alastra
por todo o mundo e do qual cada homem é mais ou menos vítima. Cumpre, pois,
combatê-lo, como se combate uma enfermidade epidêmica. Para isso, deve-se proceder como
procedem os médicos: ir à origem do mal. Procurem-se em todas as partes do organismo social,
da família aos povos, da choupana ao palácio, todas as causas, todas as influências que,
ostensiva ou ocultamente, excitam, alimentam e desenvolvem o sentimento do egoísmo.
Conhecidas as causas, o remédio se apresentará por si mesmo. Só restará então destruí-las,
senão totalmente, de uma só vez, ao menos parcialmente, e o veneno pouco a pouco será
eliminado. Poderá ser longa a cura, porque numerosas são as causas, mas não é
impossível. Contudo, ela só se obterá se o mal for atacado em sua raiz, isto é, pela educação, não
por essa educação que tende a fazer homens instruídos, mas pela que tende a fazer homens de
bem. A educação, convenientemente entendida, constitui a chave do progresso moral.
Quando se conhecer a arte de manejar os caracteres, como se conhece a de manejar as
inteligências, conseguir-se-á corrigi-los, do mesmo modo que se aprumam plantas novas. Essa
arte, porém, exige muito tato, muita experiência e profunda observação. É grave erro
pensar-se que, para exercê-la com proveito baste o conhecimento da Ciência. Quem acompanhar,
assim o filho do rico, como o do pobre, desde o instante do nascimento, o observar
todas as influências perniciosas que sobre eles atuam, em conseqüência da fraqueza, da
incúria e da ignorância dos que os dirigem, observando igualmente com quanta
freqüência falham os meios empregados para moralizá-los, não poderá espantar-se de
encontrar pelo mundo tantas esquisitices. Faça-se com o moral o que se faz com a inteligência e
ver-se-á que, se há naturezas refratárias, muito maior do que se julga é o número das que
apenas reclamam boa cultura, para produzir bons frutos. (872)
O homem deseja ser feliz e
natural é o sentimento que dá origem a esse desejo. Por isso é que trabalha
incessantemente para melhorar a sua posição na Terra, que pesquisa as causas de seus males, para
remediá-los. Quando compreender bem que no egoísmo reside uma dessas causas, a que
gera o orgulho, a ambição, a cupidez, a inveja, o ódio, o ciúme, que a cada momento o magoam,
a que perturba todas as relações sociais, provoca as dissensões, aniquila a
confiança, a que o obriga a se manter constantemente na defensiva contra o seu vizinho, enfim
a que do amigo faz inimigo, ele compreenderá também que esse vício é incompatível com a
sua felicidade e, podemos mesmo acrescentar, com a sua própria segurança. E quanto
mais haja sofrido por efeito desse vício, mais sentirá a necessidade de combatê-lo,
como se combatem a peste, os animais nocivos e todos os outros flagelos. O seu
próprio interesse a isso o induzirá. (784)
O egoísmo é a fonte de todos
os vícios, como a caridade o é de todas as virtudes. Destruir um e desenvolver a
outra, tal deve ser o alvo de todos os esforços do homem, se quiser assegurar a sua
felicidade neste mundo, tanto quanto no futuro.
Caracteres do homem de
bem
918. Por que indícios se
pode reconhecer em um homem o progresso real que lhe elevará o Espírito na
hierarquia espírita?
“O espírito prova a sua
elevação, quando todos os atos de sua vida corporal representam a prática da lei
de Deus e quando antecipadamente compreende a vida espiritual.”
Verdadeiramente, homem de
bem é o que pratica a lei de justiça, amor e caridade, na sua maior pureza. Se
interrogar a própria consciência sobre os atos que praticou, perguntará se não
transgrediu essa lei, se não fez o mal, se fez todo o bem que podia,
se ninguém tem motivos para
dele se queixar, enfim se fez aos outros o que desejara que lhe fizessem.
Possuído do sentimento de
caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem contar com qualquer
retribuição, e sacrifica seus interesses à justiça.
É bondoso, humanitário e
benevolente para com todos, porque vê irmãos em todos os homens, sem distinção de
raças, nem de crenças.
Se Deus lhe outorgou o poder
e a riqueza, considera essas coisas como UM DEPÓSITO, de que lhe cumpre
usar para o bem. Delas não se envaidece, por saber que Deus, que lhas deu, também
lhas pode retirar.
Se sob a sua dependência a
ordem social colocou outros homens, trata-os com bondade e complacência,
porque são seus iguais perante Deus. Usa da sua autoridade para lhes levantar o moral e não
para os esmagar com seu orgulho. É indulgente para com as
fraquezas alheias, porque sabe que também precisa da indulgência dos outros e se
lembra destas palavras do Cristo: Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado.
Não é vingativo. A exemplo
de Jesus, perdoa as ofensas, para só se lembrar dos benefícios, pois não ignora
que, como houver perdoado, assim perdoado lhe será.
Respeita, enfim, em seus
semelhantes, todos os direitos que as leis da Natureza lhes concedem, como quer que os
mesmos direitos lhe sejam respeitados.